A mulher do rés-do-chão

Na mesa do canto está sentada a mulher do rés-do-chão que mora com os dois filhos e há anos que não paga condomínio. Penso que não trabalha, talvez arrende um dos quartos para ter rendimento. Quando venho a este café vejo-a sentada na mesma mesa, volumosa, ocupando a cadeira toda. Conversa efusivamente com um par de idosas, uma espécie de monólogo antes, elas de mala já a tiracolo, aguardando o troco sentadas de esguelha, não querem ser indelicadas, a mulher fala da sua vida como guia turística, do dia em que perdeu o avião de regresso, que trabalha seis meses e folga outros seis para estar com os filhos, o dinheiro não é tudo na vida.  Quando subo as escadas para o meu andar passo pela porta da mulher do rés-do-chão,

Posso ir à reciclagem e voltar de escadas, sentindo-me culpada por não ter ido ao Pilates, a professora lembrando-me, ‘cê tem que apertar seu umbigo nas costas, a tratar-nos pelo nome próprio,

o cheiro a urina de gato que me obriga a suster a respiração em inspiração até outro piso. Por vezes vejo o gato à espreita na janela, mais um par de chuteiras, chove e não se lembraram das chuteiras cá fora.

As senhoras de idade deixam sozinha a mulher do rés-do-chão. Por fim, cala-se. Continuo a escrever no meu caderno. Penso que se eu a conheço ela também me reconhece de quando nos cruzamos no prédio. Sabe que a oiço e sabe que eu sei que está a mentir. Até que entram mais duas senhoras de idade. Está a chover, o interior do café está cheio, na esplanada uns gatos-pingados, um homem que masca uma pastilha de boca aberta, chávena vazia, dedilha o telemóvel e tira um cigarro do maço, levanta-se até à mesa vizinha e pede emprestado o isqueiro a uma rapariga. As duas idosas enrolam os chapéus de chuva e deixam um rasto de pingas pelo chão. Percorrem com o olhar todas as mesas, concluindo que a única vaga é ao lado da mulher do rés-do-chão. Sentam-se. Eu levanto-me e vou até ao balcão.

É para pagar.

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