Ainda vais no pão?

Quando fui para a escola vomitei todos os dias. O almoço levava-o de casa num termo vermelho, o do meu irmão era castanho. Ao acordar a minha mãe aquecia a comida e distribuía-a por quatro termos. Eu tinha um cesto de verga que se fechava com um pauzinho de madeira, a comida quando era colocada no prato ficava da forma do fundo do termo invertido. Eu era muito lenta a comer, acumulava comida na boca e onde calhasse. A senhora que nos vigiava às refeições esticava-me o garfo cheio de comida sempre que passava por mim, ao fim de meia dúzia de garfadas eu dava um arranque de vómito. Ao lanche ficava sozinha no refeitório sem poder ir para o recreio, o pão numa mão e com a outra apoiava o queixo, olhando os outros miúdos pendurados num avião de ferro. Alguém passava e dizia,

Então, ainda vais no pão?

Uma mestria que eu habilmente dominava era a arte de esconder comida nos vários bolsos. Ao chegar a casa levavam-me para a varanda para a inspeção, despejava a areia dos sapatos e os restos de comida num vaso. Habitualmente era o meu pai que nos ia buscar. Dava-me a mão e eu pedia-lhe para ele apertá-la mais. Parávamos num café, sentávamo-nos os três em bancos altos a lamber gelados de gelo de vinte escudos. Não me lembro de vomitar pelos gelados.

A minha mãe resolveu levar-me ao médico. Ele dizia que não se preocupasse, eu não iria morrer de fome, era a maneira de eu reagir, tudo uma questão de tempo. O consultório era em Lisboa, seguíamos de comboio até ao Rossio, na altura em que os comboios da linha de Sintra tinham bancos corridos, segurava o meio bilhete de cartão colorido, levava meias de renda até ao joelho e os sapatos da missa, percorríamos o centro comercial Terminal, não sei se já a minha mãe com medo de subir escadas rolantes, ficava parada com a mão no corrimão, não sei se já escadas rolantes nessa altura. Tempo para pose fotográfica junto aos pombos do Largo de Camões. O elevador de madeira com porta retráctil e a casa de banho com sanita e lavatório de tamanho infantil eram motivos suficientes para eu gostar da ida ao médico. Ir a Lisboa era sempre animado, mesmo  eu doente e que tivesse vomitado pela janela do comboio aberta a tempo, deixando um rasto de sujidade no exterior da carruagem.

Para resolver a questão da minha recusa alimentar, os meus pais deram indicação a uma auxiliar nossa vizinha para todos as manhãs me comprar um queque na cafetaria, disseram-me que era a diretora da escola que mandava. Assim nasceu a minha aversão por queques. Até que um dia, no meio da confusão do refeitório, a diretora veio ter comigo. Perguntou se eu sabia que tinha sido professora da minha mãe e do meu tio, noutros tempos. A minha mãe contara-me que na altura dela cada criança levava a sua tigela para a sopa. A partir daí comi sempre o queque sem torcer mais o nariz.

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  1. Dear, dear, “Another one bytes the dust”.

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