O tom

Procuro o meu tom. Será assim tão complicado achar um tom? Dizem que é uma questão de disciplina, estabelecer horários e cumpri-los. Estou a ler um livro da biblioteca, esqueço-me de quem o escreveu e oiço a voz da senhora com problemas de memória à procura do cão. O galgo está na contracapa, alguém que a avise. Pergunto-me quem terá lido este livro antes de mim, que deixou algumas frases sublinhadas a lápis.

Não penses tanto, essa mania de pensar. Pensar faz mal, dói.

A história, qual história? A velocidade com que o papel absorve a tinta de uma caneta de tinta permanente. As bolhas de ar da minha respiração que sobem para a superfície quando mergulho. Como se o meu pensamento dominasse o corpo. Sou racional de mais. As ideias têm que ser essenciais, o oftalmologista que tresanda a tabaco, a sua boca como uma caverna, a senhora que me recebe em casa envergonhada com o creme depilatório no buço, desculpe mas faltavam-me cinco minutos para tirar isto quando tocou, apontando para a embalagem que segurava na mão. Aos poucos tudo virá. O meu avô que se despede à porta do lar, de olhos marejados, como se partisse de barco, lenço em riste, não sabendo quando será o seu último dia, múltiplos adeus e ele que nem chora segue recuando para a porta, a minha mãe que me liga, li o teu texto, nós não levávamos presunto com osso para o campismo, só presunto normal, num saco de rede que pendurávamos com um atilho numa árvore, por causa das formigas.

As ideias pairam de noite como abutres que me rodeiam, que me bicam o cérebro. Viro-me de lado na cama esperando que mude de cenário, depois que a minha avó morreu sonhei uma única vez com ela, estávamos sentadas lado a lado e por isso não vi a sua cara, disse-me que já sabia que eu tinha encontrado alguém, disse-lhe o nome e ela respondeu-me, já sei.

 

 

 

One Comment

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  1. O tom não podia ser diferente, tempos conturbados…

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